As mutaçons rekombinantes do repertório antagonista
[ versom 1.0 ]
Contribuçom ao livro coordinado por Alfredo Iglesias, 15M. O pobo indignado (Laiovento, 2011)
Sabiamos que chegaria o momento, mas nom sabiamos quando. A gestaçom do 15M foi, de feito, a crónica de umha rutura anunciada. Num premonitório artigo para o quinzenal madrileno, Diagonal, advertiamos já, em explícita alusom ao conhecido apotegma tocquevilliano, que “durmiamos sob um vulcám”/1. Apontavamos para convocatórias de Juventud sin Futuro (JsF) y Democracia Real Ya (DRY) como possíveis gestos que relançariam um novo ciclo de mobilizaçons alheio aos esgotados repertórios da esquerda continuista ou “conservadora” (a que com independência de ser mais ou menos moderada ou radical, de tal ou qual família ideológica, sempre se mantém fidel ao uso de repertórios pretéritos). Um ciclo, entendiamos, que pivotaria sobre um novo agregado das figuras da exclusom internas ao trabalho: o precariado metropolitano postfordista. Nom por nada, antes que qualquer outra cousa, o 15M é impulsionado por umha recomposiçom técnica de classe que reconfigura a hegemonia interna do trabalho.
Aproveitando a estrutura de oportunidade política aberta polas eleiçons municipais e autonómicas (feito que marcaria a diferença, aliás, com a convocatória precedente de JsF), a convocatória de DRY, mas, sobretodo, a sua mutaçom repertorial nas acampadas, irrompeu na cena política de jeito disruptivo, antagonista e multitudinário. Em Madrid, com o clássico grito: “¡El pueblo unido, jamás será vencido!”, o significante pueblo era deslocado para um terreo contencioso, constituinte. Mais umha vez, o “sujeito” do poder soberano (o “povo”) deixava de estar “sujeito” e devinha multidom por meio de um exercício de desobediência civil/2. Relançava-se o movimento.
Para quem levar anos no activismo, porém, a surpresa do 15M foi bastante mais relativa do que se apresentou nos meios de massas. Ao cabo, o acontecimento vinha gestando-se desde havia algum tempo e a sua genealogia a mais meio e longo prazo bem poderia remontar até aquel 15F de 2003 em que a vaga altermundialista chegara ao seu zénite. Desde entom um longo período de experimentaçom de quase umha década permitiu a rekombinaçom repertorial sobre a que ressurgia com força a mobilizaçom do 15M. A velha toupeira ainda gosta de fazer bem o seu trabalho.
Nas páginas que se seguem queremos situar o 15M em perspectiva: por meio de umha achega genealógica —operacionalizada graças à investigaçom activista ou “investigacçom”—, gostariamos de apontar alguns elementos sobre como se chegou até hoje e como se abre um abano de possíveis nos quais cumprirá escolher para efectuar a estratégia do movimento. Para tanto, propomo-nos seguir a velha premissa metodológica do feminismo autónomo que afirmava: “começarmos por nós para nom ficarmos em nós”. Ao cabo, trata-se de que o relato subjectivo mude no intelecto colectivo.
Principiaremos assi por umha experiência singular como foi a que levou da Galiza Alternativa (GzA) a Alternativas Nómadas (AltNomds), para de seguido centrarmo-nos no prazo temporal mais imediato que marca o 15M como ponto de inflexom. Nesta perspectiva, poderemos ver até que ponto no 15M tenhem lugar continuidades e descontinuidades que interessam às luitas de emancipaçom mais em geral. Examinando as mutaçons repertoriais procuraremos expor os principais vectores sobre os quais se (re)organiza hoje a política do movimento.
Da GzA à AltNomds: prolegómenos à alquímia da multidom
Aló por 2003, no momento álgido da vaga de mobilizaçons altermundialista que começara em 1 de Janeiro de 1994 com a Declaración de la Selva Lacandona, o pequeno colectivo Galiza Alternativa, confederado na rede de ámbito estatal Espaço Alternativo, fazia um estranho anúncio para o que som os parámetros ideológicos habituais da extrema esquerda. Longe de se proclamar como avangarda, de chamar ao enquadramento das massas no partido revolucionário ou de considerar chegado o momento da passagem para a luita armada, a GzA propugnava consignas tam alheias ao acervo esquerdista como a própria “disoluçom no seio da multidom”, a “abertura de um éxodo constituinte” ou o “lançamento de um processo de desterritorializaçom”. Sem dúvida, umha linguagem críptica para a imensa maioria da sociedade, mais própria de um grupo de conjurados que nom do característico agitprop da prédica do “nacional-popular” tam prezada à esquerda radical.
Analisar o discurso da GzA como gíria de conjurados nom iria, na verdade, tam desencaminhado. Ao cabo, a política do movimento, como política da rutura desobediente que é, comporta sempre um conjurar-se contra o estabelecido, um complotar contra as forças da ordem (pública ou privada), contra as autoridades do regime em vigor... Na mesma medida em que a GzA optava por fazer política centrada no movimento, a sua era umha opçom autónoma, desobediente; alheia a qualquer determinaçom heterónoma do mando capitalista, quer de origem estatal ou qualquer outra (patronal, nacional, patriarcal, de espécie...).
As activistas da GzA pertenciam a duas geraçons activistas diferentes, nengumha das quais participara na Transiçom espanhola. Socializaram-se na vaga altermundialista ou já foram incorporadas na política do movimento durante a primeira vaga de mobilizaçons da democracia (a que vai desde a campanha contra a OTAN até a campanha do 0,7). Desde o início, interviram nos diversos ciclos da vaga altermundialista: marchas contra o desemprego, a precariedade e a exclusom; greves gerais do 15J e o 20J; LOU; contracimeiras várias; Prestige; Guerra do Iraque... Consciente do funcionamento cíclico do movimento, mas preocupada com os riscos e derivas que a ciclicidade comporta, a estratégia política de GzA tentou romper com a praxe habitual das redes activistas tradicionais.
Assi as cousas, a vaga altermundialista foi progredindo até chegar ao seu ponto culminante: o 15F/3. De resultas da análise da conjuntura posterior a este momento nasceria umha rede/laboratório/processo rekombinatório de nome Alternativas Nómadas. Por meio basicamente de umha simples lista de correio electrónico que se abriria lenta, mas progressivamente, a alguns dos sectores mais críticos e criativos do activismo galego, a AltNomds desenvolveria a um tempo um intenso processo deliberativo, umha importante laboura de networking e umha mutaçom de subjectividade conjunta de todas as singularidades implicadas. Nom por acaso, o lema de AltNomds dizia: “nom sabemos o que somos, mas si o que nom queremos ser”.
Com AltNomds inicia-se um processo de experimentaçom política inédito no antagonismo galego que, embora todas as suas limitaçons, está a demonstrar-se hoje mui atinado nas suas hipóteses (e daí o seu interesse nestas páginas)/4. Ainda nom chegara a web 2.0, mas a intuiçom desta rede/laboratório/processo dava em cheio na fórmula que o 15M tem naturalizado sob a consigna: “das redes às praças e das praças às redes”; ou, tal e como era formulado pola própria rede/laboratório/processo: “do cérebro ao corpo social, do corpo ao cérebro social”.
Expressado ainda de modo mais acabado, na própria gíria da singularidade colectiva: as dinámicas complementares de desterritorializaçom, primeiro, e reteritorializaçom, depois, som possíveis por meio da dupla combinaçom de (1) processos deliberativos na rede (listas de correio, blogues e foros) em que se produz, organiza e circula o intelecto colectivo (o general intellect do célebre fragmento sobre as máquinas de Marx) e (2) “zonas autónomas temporais” em que se encarna a agência performativa antagonista. Assi, por exemplo, teriamos a okupaçom da cêntrica panificadora viguesa na jornada de reflexom das eleiçons municipais e autonómicas de 2007 (a coincidência da jornada com o 15M nom deixa de ser um dado de implicaçons a pescudar)/5.
O valor da experiência activista de AltsNomds radica em que foi capaz de tracejar umha linha de fuga para o activismo metropolitano do Eixo Atlántico no momento crítico que se inaugurou após o 15F. No seu balanço positivo resta ter sabido ver além da ciclicidade do movimento na exigência de umha experimentaçom performativa à altura da mudança tecnológica e de composiçom social antagonista no seio do capitalismo cognitivo. Este é o ADN rekombinante que AltsNomds transmitiu por via do intelecto colectivo —e junto ao resto de redes activistas— ao que já se conhece como Movimento do 15M.
De AltNomds ao 15M: rekombinando repertórios de acçom colectiva
Sem a mutaçom da web 1.0 à web 2.0 nom se poderia compreender o 15M. O que até o momento fora a ciberexperiência a reduzida escala de pequenas redes de activistas como as citadas, geralizará-se agora sob as novas interfaces destinadas a organizar a vida social sob o mando capitalista. As afamadas redes sociais Facebook ou Twitter, tam vitais ao processo em curso, som na sua origem dispositivos de captura de subjectividade tipicamente postfordistas, nascidos em resposta à lógica de subjectivizaçom ciberneticamente mediada (mesmo se 1.0) que artelhou a revolta altermundialista. A passagem para a web 2.0 sentará, porém, as bases materiais para a reapropriaçom que terá lugar na fase baixa da vaga de mobilizaçons e que vai cobrando força a nível global nos distintos momentos de ruptura constituinte que fôrom a revolta da banlieue francesa de 2005, a rebelion helénica de 2008 ou, já nestes últimos meses, a vaga revolucionária do mundo árabe e o próprio 15M.
O período que vai desde o 15F até a actualidade vai modulando —no diferente grau e medida que corresponde a cada regime de poder— um processo de transversalidade global que modifica de modo substantivo o repertório de acçom colectiva. Trata-se de umha fase marcada a um tempo pola dificuldade crescente de mobilizaçom (devida ao fortalecimento do governo da excepçom) e pola institucionalizaçom de projectos capazes de projectar-se de jeito transcíclico e transondular. No herdo desta vaga ficárom notáveis recursos activistas como som meios de contrainformaçom, centros sociais, etc. Sem este substrato de continuidade institucional autónomo, dificilmente se poderiam estar a operar as descontinuidades rekombinantes do 15M. A novidade, embora importante, só tem valor em última instáncia como rutura constituinte e, portanto, como prática instituinte de um regime diferente de contra/poder/es.
Por outra banda, o paradoxo das fases baixas que cinde o movimento entre a institucionalizaçom e anovaçom repertorial voltou-se a verificar na vaga altermundialista. Nesta ocasiom, no entanto, as aberturas integradoras do mando fôrom um tanto escassas, bem afastadas das acomodaçons geracionais doutras vagas mobilizadoras como a dos sessenta ou a dos oitenta. Sem dúvida, a tensom excluinte operada polo mando global sobre as estruturas dos diferentes regimes subjaz à radicalizaçom política actual e, com isto, ao grau crescente de autonomia que se está a operar na política do movimento
As vans tentativas para reorientar o ímpeto constituinte desde os dispositivos de captura da representaçom política, em nom menor medida que a mal chamada desafeiçom como única alternativa à política realmente existente, evidenciam o fracasso do parlamentarismo actual. Como tem assinalado Carlos Taibo, no seio do movimento habitam duas almas. À diferença de vagas anteriores, nom parece que desta vez se esteja a abrir janela algumha para a acomodaçom de elites activistas. Se as cousas continuarem como até o presente, todo aponta para o reforçamento da estratégia e redes autónomas do movimento (da sua alma mais antagonista).
A pedra filosofal encontra-se algures entre a rede e a praça
A multidom nom se convoca, invoca-se. A convocatória do 15M para se manifestar contra a política económica do governo nunca foi pensada para se tornar o processo actualmente em curso. Nom cabe dúvida, porém, que com as manifestaçons na data assinalada o que se queria era invocar a multidom, realizar o chamado a umha rutura desobediente (“nom somos mercadorias nas maos de políticos e banqueiros”).
E a multidom respostou afirmativamente. Mesmo se, como nom podia ser de um outro jeito, a resposta adoptou umha forma repertorial outra, disrutiva e contenciosa com o mando. Os ingredientes já estavam aí: as acampadas tinham precedentes nos ciclos anteriores como a campanha polo 0,7 por cento, no Campamento da Esperança dos trabalhadores da Sintel, as acampadas contra a Guerra no Iraque, etc.; as (auto)convocatórias pola via das novas tecnologias (o swarming) estavam já no 13M, em V de Vivienda, etc.; o anonimato das vozes no herdo do altermundialismo zapatista, os Wu Ming, o Comité Invisível, etc.
O que cumpria era a “fórmula mágica”. E para isto precisava-se da componente que (re)organizasse o conjunto; a pedra filosofal do movimento capaz de provocar a rekombinaçom que invertesse a tendência para a baixa dos últimos anos. E a pedra filosofal apareceu sob a forma das redes sociais Facebook, Twitter e outras. A tecnofobia tradicional da estratégia continuista logicamente tinha anatemizado o ciberespaço como locus de rekombinaçom repertorial. No melhor dos casos, perante as políticas anti-sociais dos sindicatos amarelos a extrema esquerda convocava assembleias presenciais à defensiva contra os recortes; umha estratégia em que se teima, embora se tenha demonstrado inoperante durante os últimos tres decénios.
Sintomaticamente, um dos maiores méritos do 15M foi apanhar a militáncia da extrema esquerda com passo cambiado; desvelar o carácter ideológico (de falsa consciência) em que opera a sua actividade política, a impostaçom que constitui o seu discurso quando apela às singularidades oprimidas. Numha recente intervençom colectiva, um destacado activista do 15M barcelonês, Hibai Arbide, intitulava com ironia o seu escrito: “a militáncia é contrarrevolucionária”/6. E é que o 15M tem patenteado que a multidom nom precisa de nengum processo exogénetico para se constituir como agência da mudança social. Ela mesma é de seu mudança social.
Nom é de surpreender, portanto, que desde a militáncia, as achegas às redes sociais se tenham feito tarde, de maneira desconfiada, resistencialista; ou pior ainda, no ressentimento mais próprio das paixons tristes que acompanham quem nom saber habitar a multidom. Mesmo a dia de hoje, os partidários da estratégia continuista persistem alheios à mudança, confiando em auto/enganar/se mais umha vez ao confundir as redes com um simples meio de comunicaçom, ao nom reconhecerem a mudança de paradigma organizativo que comporta, a radical in/sub/versom da gramática política que comporta.
Na rede acham-se hoje, porém, as bases da mudança organizativa na constituiçom material da sociedade que torna possível a produçom institucional e organizaçom da autonomia. Nom é “tam só” cousa de um jeito outro de comunicar. Trata-se, no entanto, de compreender o que significa comunicar de umha perspectiva crítica da economia política nos tempos do capitalismo cognitivo; de mudar de paradigma organizativo (face a um paradigma federal), de antropologia política (face o cibersimbionte); de concepçom do poder (face umha concepçom cooperativa, nom funcionalista, nem autoritária), de rearticulaçom da soberania (face a um poder constituinte); de mudar, enfim, e no sentido mais amplo, o conjunto da gramática política.
________________
Notas
/1. A série de artigos que publicamos no Diagonal durante os meses anteriores, prognosticam com claridade a urgência da mudança de repertório de acçom colectiva e na composiçom do activismo como mutaçons sine quae non de qualquer novo ciclo de mobilizaçons. Para além de verificar esta hipótese, o 15M abriu um desafio estratégico para o activismo que só na praxe quotidiana dos meses vindoiros poderemos apreciar na sua plenitude. Nom é desatinado pensar, no entanto, que de acordo com a linha de tendência, doravante observaremos umha agudizaçom progressiva da estratégia de tensom do Estado que se traduzirá no incremento da conflitividade interna às redes activistas. Se estas som quem de afrontar de jeito criativo, anovador e antagonista a conjuntura do movimento, fica por ver.
/2.Mesmo se o habitual é que passe despercebido, ao falarmos em política de um “sujeito” operamos umha dupla tarefa de significaçom: por umha banda, falamos de sujeito como actor político com capacidade para decidir; pola outra, falamos embora de “sujeito” como un corpo social imóvel, estático, imudável que só pode operar sob a observáncia de um mando que o organiza. Este é o paradoxo constitutivo do significante povo desde Hobbes em adiante: ser transmutaçom ao corpo social da ordem política do soberano.
Fronte a esta idea, diversos autores postestruturalistas e postoperaistas como Virno, Hardt e Negri, Boutang, etc., desenvolverom na vaga de mobilizaçons altermundialista um conceito de origem spinoziana: a multitude. Por tal entende-se um corpo social complexo, intrinsecamente plural, composto por singularidades quaisquer, mutuamente irredutíveis, fruito do confronto antagonista com o mando, por umha banda, e da confrontaçom agonística no seio do movimento, por outra.
/3. Em 15 de Fevereiro de 2003, o mando imperial lançava-se à que o movimento daria em chamar Guerra Global Permanente. Em resposta à suspensom da legalidade internacional por meio da qual se vem instituindo o mando imperial, o Foro Social Mundial convocou umha multitudinária manifestaçom global de rejeiçom ao projecto militarista dos Açores. Embora o éxito da manifestaçom e a formidável crise de legitimidade que abria no seio das democracias liberais, as dirigências dos Estados implicados impunha a sua decissom por meio da manipulaçom da opiniom (as falsas acusaçons sobre a existência de armas de destruiçom massiva) e a margem de tempo que deixava o mandato representativo.
/4. A experiência de AltsNomds contradiz o tópico próprio de um mundo preglobal segundo o qual: “o galego nom protesta, colhe a maleta e marcha”. O feito de que as integrantes de GzA nom fossem dispersadas por umha lógica de exclussom territorial estato-nacional, embora ter migrado (AltsNomds é fundada a um tempo, transversal e globalmente, desde lugares tam dispares como A Corunha, Oviedo, Salt Lake City, Londres ou Genebra), evidência a procurada subversom da gramática política da modernidade.
/5. Para quem conhecer as teorias do movimento nom sorprenderá o recurso aos conceitos de Foucault, Deleuze e Guattari, Derrida e o deconstrucionismo, Debord e o situacionismo, Hakim Bey, John Holloway e o Open Marxism ou Toni Negri e os postoperaistas numha longa listagem de autores e correntes. A prática teórica, tam alheia ao continuismo repertorial, foi, polo contrário, toda umha “teima” para AltsNomds. A produçom teórica feita polas suas activistas chegou mesmo a ser objecto de umha tese doutoral, atinadamente intitulada A escola da multidom (Francisco Baño, Universitat de València).
/6. A referência concreta é Hibai Arbide (2011): “La militància és contrarevolucionària”, en Raimundo Viejo (Ed.): Les raons dels indignats. Barcelona: Pòrtic.